sexta-feira, novembro 27, 2009

Tenho que mandar afinar a memória


Não sei o porquê mas ando numa onda revivalista. Hoje, no autocarro para o trabalho, com tanta coisa boa e interessante para pensar, lembrei-me da minha primeira semana de trabalho e do meu primeiro chefe.
O cenário era a Autoeuropa, meu único empregador em Portugal, e o departamento o de engenharia do produto.
Estava fresquinho, acabadinho de chegar, com aquele típico sangue na guelra de quem quer mudar o mundo e contribuir para a paz no planeta. Enfim…nada disso aconteceu, como é óbvio.
Os primeiros dias foram uma autêntica desilusão. Sem tarefas ou responsabilidade, limitava-me a seguir este e aquele, para "ver como faziam". O resto do tempo passava-o a olhar para um computador vazio. Uma falta de respeito total por um novo colaborador. No fim do dia, saía sempre da AE com uma enorme sensacão de frustracão.
Entretanto, com o passar dos dias, fui percebendo a forma de actuar do meu chefe. É muito simples de resumir: gritos e murros na mesa. Era assim que ele apelava à razão.
Tudo bem. Fiquei com má impressão do personagem mas como não tinha nada para fazer, os gritos nunca eram dirigidos para mim.
Certo dia, já não sei a que propósito, foi necessário fazer um circuito eléctrico muito básico com uma resistência de 1 KOhm. O chefe-que-nunca-ria disse-me que o fizesse e deu-me uma resistência de 100k e outra de 10k.
Fiquei um pouco atrapalhado. Qualquer aprendiz de electricista sabe que isso é impossível. O paralelo de duas resistências tende sempre para o valor da menor, neste caso 10. Nem que me transformasse em electrão conseguia que aquilo desse 1. Tentei explicar com calma e devagar ao chefe que aquilo era uma impossibilidade matemática. Como era hábito, comecou aos gritos usando a sua frase preferida "é preciso um mestrado para fazer esta merda???" , saltando de imediato para o circuito. Tentou ligar resistências, enquanto largava umas postas, mas aquilo nunca mais batia certo. Discretamente escrevi a fórmula num papel e voltei a insistir na matemática. Tentei explicar com calma uma vez que ele, apesar de liderar uma equipa eléctrica, era mecânico de formacão. Estava nos primeiros dias e aquela situacão, com grunhidos pelo meio, era bastante incómoda.
Ao fim de algum tempo desistiu e disse: "vá, resolve tu essa merda!!"
Se a minha impressão era má, ficou pior.
O tempo passou e eu continuava a um canto a ver o dia passar.
Passado algum tempo chegou um novo chefe ao departamento. Um alemão, como é moda na casa. Comecou a fazer a rodinha pelas equipas para conhecer toda a gente, até que chegou a vez da equipa eléctrica.
Estávamos todos numa sala e, um a um, os meus colegas apresentaram-se dizendo o que faziam e que responsabilidades tinham. Eu fiz o mesmo. Quando chegou a minha vez, disse o meu nome e o que fazia. Se bem me lembro a traducão fiel do inglês foi: "Não tenho nada de especial para fazer aqui".
O meu chefe engasgou-se e bastante encavacado lá disse ao alemão "ele é um caso especial, eu explico-lhe depois".
O meus colegas esbocaram um sorriso e eu desmanchei-me por dentro. Adorei ver aquela cara de "sentei-me num garfo".
Escusado será dizer que pouco tempo depois estava noutro departamento. O que foi uma pequena dádiva.
Fiquei 4 anos nesse departamento. Excelente ambiente de trabalho, boa gente e óptimos colegas.
Esse chefinho, visto a esta distância, o pior que alguma vez tive, é hoje um dos manda-chuva na AE. Seguiu aquilo a que internamente se chamava "o cursinho da Lufthansa" (que consiste em ir 3 anos para Wolfsburg servir cafés aos alemães e voltar para a AE como chefe de qualquer coisa) e hoje grita com muito mais gente.
Comparando com a forma como os chefes tratam os colaboradores neste lado do mundo, até sinto uma certa vergonha. Enfim…boa sorte para quem o ouve. Até há quem goste, daquilo que me lembro.
Para mim, foi como jogar ao monopoly e receber o cartão "você está livre da prisão".
Deus te pague.

1 comentário:

BoyGenius disse...

Quem diz AE diz muitas outras empresas que tem verdadeiras bestas na liderança... é ridículo...