segunda-feira, dezembro 16, 2013

O erro

 
Desde que cheguei ao Pólo Norte, no longínquo Fevereiro de 2006, já passei por várias empresas e, se a memória não me engana, perto de 15 projectos.
Não me lembro de metade mas tenho a vaga memória que a coisa, sempre em cima do joelho é certo, vai correndo mais ou menos bem.
É rara, raríssima a vez, em que comeco um novo projecto e, depois de ouvir o que o cliente pretende, tenho a mínima nocão do que devo fazer.
Aqui e ali lá aparece um daqueles em que é só virar o frango mas, na maior parte das vezes, comeco sempre de lanterna numa gruta escura e fria.
Quando tudo acaba, suspiro de alívio. Quase como se o avião aterrasse com ventos cruzados e eu, lá dentro, parasse de verter o Nilo pelas mãos.
Normalmente não sou muito esquisito na escolha. Ouco as descricões, parece sempre tudo fantástico, não percebo metade e digo que sim. Claro que sim. Vamos a isso. Depois se verá.
A atitude dá-me dores de cabeca mas pelo menos, nunca me faltou trabalho. Por outro lado, como nunca sei onde aterro, fico sempre supreendido quando a coisa corre bem.
Mas claro, algum dia tinha que arder. E ardeu.
Em Agosto comecei mais um. Parecia complicado. Controlar uma espécie dum iPad dentro de um carro (Volvo) com a voz. Não fazia ideia de como meter aquilo a mexer, mas, como de costume, disse que sim.
Pensei que se aquilo algum dia funcionasse, até poderia ser giro. E o Senhor sabe como preciso de motivacão para brincar aos engenhocas. Agora...a palavra-chave aqui é "funcionar".
O prazo para a entrega ficou acordado em 5 meses. Tudo bem. Comigo é sempre tudo bem. Até me comecar a arder nas calcas, está sempre tudo bem.
Ao fim do primeiro mês e de algum estudo percebi que não era possível fazer aquilo para que me tinham contratado. Expliquei isso ao cliente. Faltavam pecas no puzzle. Eles não percebiam bem como é que o sistema (que era deles) funcionava.
Fizémos um novo acordo e tracámos novos objectivos.
Mais um mês e nem material tinha para trabalhar. E mais um.
3 meses passaram sem que eu conseguisse produzir nada. Pediram-me que construisse uma casa e nem um martelo me deram. Não estava habituado a tal desorganizacão por estes lados. Os suecos são, por norma, competentes e organizados a trabalhar.
Fui alertando ao longo dos 3 meses que o tempo estava a passar. 60% do budget estava gasto só no meu salário e o retorno era zero. Perguntaram-me se podia empurrar os pregos com os dedos, já que não arranjavam martelo. Tentei, semana após semana, até ficar com os dedos roxos.
Um belo dia acordei e pensei que nada disto fazia sentido.
Pagavam-me para não trabalhar. Não tinha hipótese de construir nada decente usando os dedos no lugar de um martelo.
Fiquei entre duas hipóteses. Colocar um travão em tudo e arriscar-me a perder o emprego ou, continuar a martelar com os dedos mais dois meses até esgotar o budget e não ter nada de jeito para mostrar.
Gotemburgo é uma cidade pequena e na minha área vivemos do nome, ou da falta dele. Decidi perder o emprego e salvar o nome. Sem falhar no CV poderia sempre arranjar outro emprego. Com queimadelas é que a coisa se podia complicar. O boca a boca tem uma forca apreciável nesta cidade.
Chamei o meu chefe e disse-lhe que ia sair do projecto. Não queria meter o meu nome numa coisa condenada ao fracasso, com avisos repetidos e bandeiras vermelhas levantadas desde a primeira semana.
Fomos para a Volvo e sentei-me com a líder do projecto e mais não sei quantos suecos que nunca tinha visto na vida.
Expliquei a situacão a todos e disse que estava fora. E foi aqui que a surpresa chegou.
Ninguém me despediu. Ninguém se chateou. Nem sequer mostraram uma ligeira desilusão.
Limitaram-se a pedir desculpa por não terem proporcionado condicões para que eu pudesse trabalhar.
E no fim, pediram que por ali ficasse noutro projecto, dentro da mesma área (controlo por voz), e por um prazo maior.
Na semana seguinte arranjaram todo o material de trabalho necessário para este novo projecto e, desde o dia 1, comecei a produzir.
No fim, já sozinho, senti uma certa vergonha. Aquela coisa triste do fado português de se procurar sempre um culpado e alguém para apontar o dedo. O receio que tive e o tempo que esperei para dizer o óbvio com medo de represálias. Sem material não se pode trabalhar. Simples e básico. Qualquer sueco teria dito isto ao fim de 1 mês. Eu esperei três.
Que chefe em Portugal, tendo gasto 60% de um budget em nada, teria a humildade de reconhecer o erro e de pedir desculpa a um colaborador?
Eu ainda me lembro do meu primeiro chefe em Portugal, gritar comigo por não conseguir perceber como funcionava um paralelo de resistências eléctricas, depois de eu lhe explicar a mesma fraccão matemática 10 vezes.
Vivendo e aprendendo com esta malta.
Não percebem nada de bola ou de tacho, mas naquelas 8h que contam, honra lhes seja feita, são grandes.


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