John era uma americano, culturalmente falando, acima da média.
Todos os dia almoçava um Big Mac. Ao contrário da maioria dos seus colegas não o fazia com as mãos e recusava-se a empurrar a salada com o dedo.
Usava garfo e faca. Despojos de uma educação europeia. A mãe nascera em Toulose e o pai viera de Nancy. Casaram-se no escaldante Maio de 68, procurando depois refúgio na terra prometida, onde viria a nascer John. Foram operários anos a fio, na companhia onde hoje em dia, John tinha uma importante posição. Envolventes janelas o circundavam no seu elegante escritório, algures no 57ö piso de um arranha céus em Detroit. John, era dos poucos naquele piso que sabiam que do outro lado do rio estava o Canadá. Era por isso respeitado.
Vivia sozinho. Uma vida dedicada ao trabalho e ao estudo do mundo que rodeava Detroit, não deixou a John tempo para a contrução de uma família.
Certo dia, em busca do conforto de uma pelo sedosa, John vagueou pela baixa de Detroit até entrar num bar de nome "Rasputine".
Entre um cognac e um vermute, John reparou numa rapariga de pele branca e cabelo dourado. Pela ausência de raízes pretas, deduziu que não era pintado. John era esperto e de imediato pensou que tão cristalina aparência devia ser de outras paragens.
Estava certo. Inga chegara recentemente da europa, mais concretamente de söfar, uma pequena aldeia no círculo polar ártico, conhecida pelo sol da meia noite. John, apesar de comer de garfo e faca (como os pais ensinaram), tinha estudado nos liceus de Detroit, pelo que para ele a Europa era um conjunto de países até Veneza e a partir daí até ao Japão ficava o território Siberiano. O manual por onde John estudara tinha sido escrito pelo senador McCarthy e por isso, falar com Inga tinha sido como descobrir que o mundo afinal não era plano.
Muito afoito regressou para o escritório, a sua verdadeira casa, e releu os relatórios de contas. Finalmente percebeu que aquela "sucursal" que apresentava sempre resultados negativos não estava encerrada num "gulag", nem era gerida por pessoas movidas a vodka. Afinal até nem estava tão longe assim da sua Veneza-limite-europeu. Animado e aproveitando a diferença horária, John ligou para o escritório do Ártico. Aí pediu para falar com o chefe local. Este, ouvindo aquele cujas fotografias estavam espalhadas pelo corredor, não conseguiu conter uma certa flautulência resultante da emoção. John tinha sido claro. Queria resultados, queria lucros e não aceitava mais as habituais desculpas do frio. "Frio é na Sibéria! Se forem bem agasalhados nas gôndolas, não sentem o frio aí no Ártico!!", dizia.
Totosson, o chefe local não perdeu tempo. Convocou todos os trabalhadores e formou equipas, exigindo resultados, nem que para isso fosse necessário trabalharem 24h sobre 24 horas.
Abib, era um emigrante curdo. O único que não nascera no Ártico e cuja pele não refletia o sol. Fora destacado para trabalhar com Falamuitosson, uma rapariga da terra. Abib já tinha reparado que Falamuitosson gostava de reuniões, de falar, de traçar planos, de dizer "nós", mas quando chegava a altura de "sujar as mãos", ficava normalmante com problemas gástricos e desaparecia.
"Desta vez será diferente! Foi uma ordem do John", pensou Abib.
Quando as 17h chegaram Abib estava só. "Já terão passado as 24h?", pensou. Ainda não tinha visto a sua colega de trabalho e tinha estado a fazer as tarefas de ambos sozinho, durante todo o dia. Estava um pouco aborrecido, mas de repente avistou a sua colega ao longe. Parecia que vinha na sua direcção quando algo interrompeu a passada. Surgira a hipótese de uma boa conversa e Falamuitosson não queria deixar os seus créditos por mão alheias.
Falou calma e descontraídamente durante 3h, esticando de quando em vez o polegar a Abib, dizendo: "Está a correr tudo bem?".
Ao fim das primeiras 2h Abib estava mesmo chateado e prestes a retornar para o seu antigo negócio de Kebab. O limite foi atingido 1h depois, quando o relógio batia as 20h e Falamuitosson continuava descontraídamente a esgotar a gramática local.
No seu Curdistão natal, Abib ter-se-ia levantado e em tom de voz ligeiramente alto diria: "Olha lá, por acaso tenho uma bola vermelha no nariz?? Achas que tenho cara de palhaço??". Abib sentia uma urticária enorme e uma vontade incontrolável de pregar ao profeta, mas no Ártico não se discute e está sempre tudo bem.
Assim, quando 3h depois Falamuitosson se dirigiu a Abib dizendo: "Sabes Abib, estou muito cansada. Dói-me a cabeça e preciso de ir descansar para o conforto do lar. Amanhã é que me vou concentrar nisto a 100%"
Abib sorriu e disse: "Então vemo-nos amanhã. Melhoras e descansa, que hoje foi um dia puxado."
5 comentários:
não sei como é que o Abib consegue!! eu por mim já tinha armado a tenda! =)
boa sorte Abib! ;)
:) E vivam os contos. Adorei. Ainda bem que existe, pelo menos, + uma pessoa no mundo (tu) que escreve e fala pelos cotovelos, como eu :D
Já Somos 2! Haverá +? Duvido :/
Claro que há mais! Felizmente malta que se desenrola pelos cotovelos, não falta.
Nós somos um país de blá,blá,blá :)
Falar está no sangue luso. E ainda bem (digo eu...).
levanto o ostracismo a que te votei, apenas para comentar mais este post (depois desapareco:)). esse abib puxa assim um bocadinho para o morcaozito, não?:) é que não é por cada, mas era mesmo impossível impores-te um bocadinho pequenininho mais? o abib, digo....:)
N vale a pena desaparecer :)
N se trata de impor ou não...é apenas o ritmo a que as coisas aqui se processam. Há decadas que é assim, todos vivem bem com isso e todos se entendem nesse esquema de "amanhã nunca é longe de mais".
Não posso simplesmente chegar aqui com o sangue na guelra e pensar que passados 6 meses posso mudar mentalidades e hábitos quase seculares :)Era como chegar a um pinguim e pedir-lhe que vá para a Amazónia...
Depois, além de ser o mais novo na equipa, pertenco a uma empresa externa, o que me coloca naquela linda posicao de consultor/cliente. Por muito que me custe (e acredita q custa...), n posso de todo, dizer o que penso ou da forma que me apetece...
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