terça-feira, agosto 15, 2006

José Régio














Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,E
nunca vou por ali...


A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,Não sei para onde vou,
--- Sei que não vou por aí.


José Régio

3 comentários:

José Leite disse...

Sou de VILA DO CONDE e aprecio imenso José Régio. Esta poesia é lapidar. Define a sua independência face às correntes , aos movimentos ideológicos, enfim, às vezes tentações totalitárias!...

Foi um Homem livre. Morreu solteiro e bom rapaz. Mas deixou mensagem de independência, de orgulho e de rectidão de carácter que me apraz registar. GOSTEI DA LEMBRANÇA!

Tiago Franco disse...

Eu ouvi ontem pela primeira vez e não fui capaz de não a partilhar.
Acho-a intensa e inspiradora.
Muito obrigado pela tua visita :)

Anónimo disse...

Eu simplesmente adoro este poema! Tenho-o num dos meus "diários de bordo". Marcou um pequeno momento da minha vida e acabou por se tornar especial. Coincidência engraçada :)

Bjins*