sexta-feira, outubro 26, 2007

Um conto de Natal *

Dezassete e trinta. Horas.
Quantas vezes escrevemos um número por extenso? Entre 0 e zero vezes.
Dizia…17.30h.
Saio do trabalho e preparo-me para percorrer os 200m de alcatrão que me deixam perto do carro.
Está frio. Não é fresquinho. É um frio bem gostoso.
Sinto-o em cada osso. Um dia comecarei a usar casaco. Prometo.
150m depois avisto o meu carro. Está só no parque. Também, o que se poderia esperar a esta hora da madrugada?
Desvio o olhar para um canteiro. Não tem mais do que 70 cm de largura. Atravessá-lo não é muito civilizado mas evita os último 20m do percurso.
Depois de 180m ao frio, não fazer aqueles 20 parece-me razoável.
Vejo que tenho que pisar uma ou até duas ervas daninhas para atravessar o canteiro. Olho para os lados e não há ninguém da Quercus por perto. Avanco.
Dou umas bicadas com a chave na chapa até conseguir acertar com a fechadura. Luvas também teriam sido umas companheiras fantásticas.
Entro e sinto gelo em estado puro. Ligo o carro e a "sofage" comeca a empurrar ar frio. A/C é para meninos.
Acelero o mais que consigo até ao primeiro semáforo e o cheiro a gasolina mistura-se com o ar. Estou gaseado mas um pouco mais quente.
Vem de baixo o ar. Está apontado para os pés.
Percorre os pedais, atravessa as solas, vem pelos joelhos e quando chega ao pescoco já aconchega.
E cheira.
Cheira?
Não é suposto cheirar.
Mas cheira e não é a ferro de engomar.
Olho em volta e estou só.
Cheira muito mal.
Epá não pode ser. Não acredito. Queres ver que pisei? 180m de alcatrão e 70 cm de terra e pisei? Naqueles 70 cm e dois passos?
As dúvidas arrastam-se até ao terceiro semáforo. Rezo pelo vermelho que acontece. Disparo porta fora e no meio do gelo miro as solas.
O direito. Logo o direito!! Está lá. E agora? E agora?
No minuto que o vermelho me concede olho para o alcatrão em busca de um pauzinho de perna de pau. Nada, rigorosamente nada.
A estrada está extraordinariamente limpa. Só há alcatrão. Que saudades do eixo norte-sul e das suas bermas cheias de latas, paus de gelado e demais utensílios imprescindíveis.
Não quero entrar no carro. Raspo no alcatrão liso e fica tudo na mesma.
Aparece o verde e o gajo de trás apita indiferente ao meu fado.
Entro e procuro solucões.
Mas é o direito. O do acelerador. Não dá para não usar!
E se for de meia?
Epá não dá. O pedal já tem amostras. Sujava a meia.
E se trocar as pernas? Huumm...espalho material pelas calcas.
E agora pá? E agora? Como? Como?
Agora aguenta.
Mas desliga o ar quente está bem?




* - de Charles Dickens (adaptacão livre)

3 comentários:

catarina disse...

180m de alcatrão e 70 cm de terra...

já ouviste falar em karma?







[estava só a perguntar...]

Rui disse...

Fantástisco, mas que escrita, passo muitas vezes por aqui sem comentar mas desta vez não resisti! Continua! :)


Convido-te a visitar o meu blog! http://blogpredilecto.blogspot.com

Sandrinha disse...

É sinal de dinheiro!

;o)