quarta-feira, março 21, 2007

O grau

Vivo num monte.
Não tem chaparros nem ombreiras azuis (forma subtil de dizer que não fica no alentejo).
Não lhe posso chamar colina porque é mais baixa do que aquela onde está castelo de S.Jorge, mas também me parece alto de mais para chamar "lomba".
Tendo em conta que a partir de 150m os locais usam o termo "montanha", parece-me que "monte" é o mínimo que posso dizer.
Como todos os montes tem um problema. A altura.
Sair de lá tudo bem. Voltar nem tanto.
Por estes lados a primavera chegou.
Há sol, há ceu azul, há +1°C às 8 da manhã.
Com estas condicões não há quem segure as bicicletas em casa. Parecem vespas a encher as ruas.
Calor é calor e há que aproveitar.
E eu sou diferente?
Nem pensar! Depois de serrar o meu próprio cadeado e libertar a bicicleta estou pronto para "atacar o monte".
Decidido agarro num alicate de corte e comeco furiosamente a cortar o cadeado com a energia de quem tomou a sua dose reforcada de Ginseng. Tenho um gorro na cabeca. Certo, está 1 grau e o sol brilha, mas o que posso dizer? Ainda não me converti ao calor escandinavo.
O gorro. É um belo gorro. Confortável e com um certo estilo hip-hop, roubado ao meu irmão 10 anos mais novo. Com a barba por fazer e com aquele gorro poderia arrumar carros em Belém sem problemas. Quem sabe até poderia dizer a segunda frase mais emblemática de todo o sempre depois de "100 paus?? Porra...'tá um gajo aqui a trabalhar p'ra isto!!!"
Como Belém estava longe resolvi virar-me para o cadeado. Era dia. Não tinha chegado ainda aquele dia do mês em que faco a barba.
Pais e filhos saindo do prédio para a sua rotina diária e eu, munido do gorro, de alicate nas mãos no meio das bicicletas a tentar safar a minha. Um belo cenário.
Eis quando aparece a velha. Todos os prédios têm uma velha.
Normalmente vivem no rés-do-chão (e não resto-chão), estão reformadas desde o dia em que nascemos e passam o dia de bata e bracos cruzados na janela a ver quem passa. São mais eficazes que um PSP com o corta-unhas. Toda a gente sabe que não há polícia de giro que não aproveite as esquinas para cocar as costas e cortar as unhas. Nunca vi nenhum a correr atrás de bandidos mas já os vi a manejar aquele corta-unhas como samurais.
Sinto dificuldade em manter a linha de raciocínio hoje...
Nova tentativa. A velha.
Aparece e olha para mim da janela. Estabelecemos contacto visual e vejo que a boca dela mexe.
Não percebo as legendas e resolvo tirar os phones interrompendo o Chris Cornell que me dizia que eu sabia o nome dele (se apanharem esta podem entrar no clube do James). Ouco a velha.
"Jag prata liten svenska...Kan du prata engelska med mig?", digo eu pensado que a vou arrumar. Aposto que ela não se safa em inglês!
Do alto dos seus 70 anos espeta-me com um inglês perfeito dos seus dias de glória em Oxford.
"Essa bicicleta é tua??"
("Não, mas achei que esta hora da manhã com toda a gente a passar seria a melhor para a roubar. Até liguei os phones para ficar mais solto!!"), diz o meu lado idiota. Mas a língua não bate no céu da boca e não produzo som. Safei-me.
"É sim senhora. Entalei a chave e agora tenho que serrar o meu próprio cadeado.", digo com aquele sorriso envergonhado enquanto mexo os ombros ilustrando o clássico "é a vida..."
Levanto um pouco o gorro e de imediato ouco: "Ahhh...tu és aquele que prendia a bicicleta aqui debaixo da minha janela e a quem eu já tinha pedido para a tirar dali? "
Reconheceu-me. E que bom é sentir o conforto de quem nos conhece.
Acabei o servicinho cada vez mais incomodado. Sentia cada olhar que passava. Estava de facto a roubar a minha própria bicicleta.
Lancei-me "monte abaixo" (figura de estilo) com o vento a atravessar-me os ossos. Não que estivesse algum, eu é que pedalei muito. A descer sou um ás!
Já sei que no regresso a subida envolve sangue, suor e lágrimas (parece o hino do "sportém") e por isso venho com pouca roupa para não fazer a sauna do costume a subir.
Mas e agora? Agora congelo todos os ossos e pedalo o mais que consigo para aquecer o corpo.
Faco corridas com todos os suecos que apanho no caminho. É uma diversão como qualquer outra...
Chego ao trabalho com a língua de fora e o corpo colado ao selim. "Tenho que repensar esta estratégia de vir sem casaco", diz uma parte de mim, enquanto a outra se descola da bicicleta. Os bracos não mexem e os joelhos não dobram. Desloco-me como se tivesse 3 enciclopédias debaixo dos bracos, esperando que o calor do escritório me devolva à minha forma original.
Pelo caminho uma única paragem, o lixo. Deposito lá o cadeado já sem alma nem fios de aco.
Poderia comprar outro mas deixou de fazer sentido.
A velha já sabe qual é a minha bicicleta.

2 comentários:

nana disse...

lol ;o)

Inês disse...

Tenho saudades da minha bicicleta em Itália. É óptimo deslocarmo-nos para todo o lado nessas 2 rodas sem motor. É pena que em Portugal não funcione. É ecológico, relativamente rápido e muito, muito económico.