Tudo começa no semáforo.
Paramos, olhamos uns para os outros e rangemos os dentes. Batemos fortemente no pedal e esperamos pelo vermelho. Ele cai.
Começa a corrida dos emigrantes!
Os suecos e escandinavos em geral, param no vermelho para as bicicletas mesmo que o carro mais próximo esteja a dar a curva na Sibéria. Vem do berço. Os alemães imitam e aproveitam a pausa para um golinho no cantil da cerveja quente.
Os mexicanos, chilenos, iraquianos, bósnios, espanhóis, italianos e por aí fora seguem a marcha desde que arranjem 2 seg entre cada carro para passar.
Fiquei confuso.
De um lado o civismo, do outro lado a Natureza.
Não se pode fazer nada contra a vontade do Senhor que como se sabe criou a Natureza.
Depois, uma corrida é uma corrida. Aquece a alma e sobretudo os ossos.
Há muitos semáforos no percurso, mas nenhum se compara ao que antecede "O Corredor".
É uma recta enorme que atravessa 3 campos de futebol e onde se decide diariamente quem chega ao trabalho com as costas mais suadas. É um título cobiçado e por isso as regras de cavalheiros ditam que vale tudo menos tirar olhos.
Arrancámos!
Aí sou um pouco Obikwelu. As mudanças já não funcionam todas e tenho que dar corda aos sapatos numa bem pesadota. A estratégia passa então a ser a clássica "trás para a frente" (até porque ao contrário convenhamos que se tornaria mais dificil) .
Nos primeiros 100m tive que recuperar a posição e agarrei-me a dois iraquianos pelo turbante de forma a aproveitar o túnel de vento criado por aquelas cabeças em "V". Com estes resolvidos apareceu-me o mexicano pela frente. Tinha perto de 100 Kg e batia com os joelhos na pança a cada pedalada. Abanei 3 vezes um chili e vi-o deslizar em "aquaplaning" na sua própria baba. Mais um obstáculo ultrapassado e chego a um gajo de fato, impecavelmente penteado e de óculos escuros. Era o italiano.
Senti a mão a arder com o picante e mandei o chili fora. Um pequena explosão criou uma cratera onde o italiano, distraído com a popa, se espalhou.
É então que vejo uma bicicleta com luzes do "Kit", 2 selins, um side-car e um atrelado. Tinha apanhado o chinês. Pedalava vigorosamente para chegar em primeiro, montar a tenda e vender "ládios" aos mexicanos. Empurrei-o para fora da ciclo-via e um poste entre a bicicleta e o side-car fez o resto.
Normalmente sou uma das pessoas mais simpáticas no hemisfério norte (e estou no top20 do hemisfério sul), mas no "Corredor" não há espaço para sorrisos.
3 ciclistas me separavam agora da vitória.
Lado a lado, dois cabelo-de-ouriço fotografavam-se mutuamente. As bicicletas tinham sensores, propulsores e detectores. Com os japoneses tinha que usar a cabeça...
Reparei que um deles tinha apenas 3 máquinas ao pescoço e atirei ao ar uma velha Kodak descartável. Olharam de imediato para cima e antes que percebessem que não tinha 15 "mega-pixéis" aproveitei o efeito surpresa para os ultrapassar.
Entrei nos últimos 100m já em velocidade cruzeiro com a minha "mái nova" a guinchar por todo o lado. Não percebi quem era o gajo que ia na frente...
Levantei o rabo e fiz o sprint final em estilo Cândido Barbosa mas sem a cara de saloio.
A 50m do fim o meu opositor pensando que nada mais existia para além da sua roda da frente e de trás, levantou os braços agradecendo aos céus pela vitória. Fiquei a pensar "será que é...?"
Fê-lo aos berros como se o Senhor estivesse noutra galáxia e dissipou-me qualquer dúvida. Era um "nuestro hermano".
A gritaria aborreceu o Senhor e a ira divina foi fatal. Acordou de imediato S. Pedro que ao bocejar afastou as nuvens. Imitando o governo português, o sol aproveitou a ausência de oposição para brilhar, ofuscando assim o galego.
Temente ao Senhor, de olhos no chão e rodas em brasa passei-o em cima da meta.
Tinha as costas regadas e o título era meu.
O espanhol ainda veio dizer "rebenta a bolha e não sei quê" mas o "foto-finish" dos japoneses com a minha Kodak não deixou margem para dúvidas.
Bem encharcadinho segui para o trabalho. O olhar cúmplice dos meus colegas não deixava margem para erro. Eles sabiam que eu tinha ganho a clássica das manhãs escandinavas.
Vi respeito e admiração nos olhares.
Torci a t-shirt e limpei o suor da glória. Não cheirava. Nunca cheira.
Sou um dos 5 europeus cujo suor pode ser engarrafado e vendido como Lavanda.
Por outro lado o Wally já tinha chegado e de manga cava perfumara todo o espaço interior.
"Baixa a bola, que aqui quem cheira sou eu!", disse-me em surdina.
Estive tão perto do Olimpo.
1 comentário:
uma bela história... um habilíssimo contador :o)
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