segunda-feira, julho 03, 2006

Texto (MST)


O Massacre do Jornalismo


" Há 25 anos atrás (meu Deus!), quando eu cheguei ao jornalismo, estava tudo por reinventar. Uma geração inteira de jornalistas treinados na mordaça e na censura viram chegar uma nova geração de jornalistas que tinham o privilégio de iniciar a sua profissão em liberdade e para um público sedento de jornalismo livre e diferente. Comecei por um péssimo jornal ("A Luta"), dirigido por um jornalista que fora sempre da oposição, embora em tudo o resto fosse um verdadeiro jornalista do antigamente: Raul Rego. Para me defender daquilo que era uma secção nacional engajada politicamente no apoio ao Partido Socialista e no qual eu não queria colaborar, não por razões políticas, mas sim jornalísticas, candidatei-me à secção internacional, onde tive a sorte de encontrar um chefe que vinha de Paris e da imprensa estrangeira e que não quis saber se eu tinha carteira do PS, mas apenas se era competente. Fiz aí o meu estágio - de dois anos, como ordenava o estatuto do jornalista - ao abrigo da manipulação e dos fretes partidários que então caracterizavam o panorama jornalístico do país. Quando me mudei para a minha segunda redacção, confirmei o que era a imensa incompetência e impreparação da classe jornalística disponível: nas secções internacionais era banal que nenhum jornalista falasse inglês, que nenhum soubesse como funcionavam as Nações Unidas ou o Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, que nenhum tivesse lido a "Bíblia" que era então a "História Dilplomática do Século XX", do Duverger, ou qualquer coisa de próximo. Limitavam-se a reproduzir os telexes traduzidos pela Lusa e missão cumprida.
Poucos anos mais tarde, por circunstâncias ocasionais, encontrei-me integrado numa comissão governamental destinada a criar o primeiro curso universitário de jornalismo e a definir o seu plano de estudos. A comissão era presidida por um ilustre representante do jornalismo da velha guarda, o qual dormiu sumptuosamente desde a primeira até à última sessão de trabalhos e no final foi condecorado no 10 de Junho. Durante o seu eterno sono, os outros ilustres membros, todos "jornalistas consagrados", trataram de se apoderar da coisa e produzir um relatório final onde o curso tinha a duração de quatro anos, de modo a que quem o frequentasse pudesse ser tratado por "dr." e onde se iriam aprender coisas tão importantes como a semântica da entrevista ou a sociologia da reportagem. Fui arrasado por toda a comissão quando me atrevi a apresentar um plano de estudos que previa cadeiras como Português, Inglês, Redacção, Televisão, Noções Elementares de Economia, Direito e História Diplomática. Hoje, a maioria dos membros dessa longínqua comissão são doutorados em Jornalismo e exercem por aí a respectiva docência. Do resultado do seu saber e da sua docência resultou uma segunda geração de jornalistas que saíram cá para fora todos licenciados, todos íntimos dos teóricos do jornalismo em voga e todos, com raras excepções, notavelmente impreparados e incompetentes para a função. Vivi, já como editor, casos verdadeiramente anedóticos com esses "doutores jornalistas".
Depois disso, o jornalismo tornou-se uma moda e o seu ensino um negócio rentável. Uma profissão que requer uma vocação própria e um espírito de missão e de serviço transformou-se numa escolha universitária por exclusão de partes e num trabalho sonhado para impressionar a família, os amigos ou os colegas de café. No meio disso e da confusão instalada, perderam-se muitas vezes os verdadeiros casos de talento e de competência. Mas, apesar de tudo, essa segunda fornada de jornalistas formados em liberdade tinha uma vantagem: havia normalmente quem, nas redacções, os ensinasse e corrigisse. Quem lhes transmitisse o entusiasmo, o sentido de missão e o orgulho num trabalho limpo e bem feito.
Hoje, perante a terceira geração de jornalistas pós-25 de Abril, o panorama é triste e devastador. Num mercado, audiovisual ou da imprensa, de concorrência letal e receitas escassas, os proprietários, com raríssimas excepções, esqueceram tudo o que tinham prometido de boas intenções, bons princípios e dessa destrinça subtil, porém decisiva, entre o que é o interesse público e o que é o interesse do público. Essa função tão nobre e determinante numa sociedade democrática que é a do "publisher" está hoje, entre nós, resumida ao desígnio de sobreviver e ter lucros, seja a que preço for.
Abaixo dos proprietários e recebendo deles pressões constantes e ameaçadoras, está a camada de editores que são os verdadeiros responsáveis por tudo o que se faz e publica. São "a voz do dono", totalmente submissa ao que manda o proprietário, ao que transmite o departamento de audiências e ao que recomenda o departamento comercial. Da antiga paixão pelo jornalismo já nada lhes resta, senão o cansaço. Do antigo orgulho no espírito ético da profissão, resta-lhes o cinismo com que olham para tudo e decidem, sem um estremecimento de pudor, que "esta notícia vende, aquela não vende".
Abaixo dos editores, está a terceira geração de jornalistas de depois da censura - os jovens jornalistas de agora. É de longe a mais reprimida, a mais abusada e a mais desiludida geração de jornalistas de sempre, incluindo as do tempo da ditadura. São censurados todos os dias, não por um coronel da Censura, mas pelo seu editor sentado na mesa ao lado. Os seus textos são manipulados, virados do avesso, reescritos em busca do grão de escândalo que possa ser puxado para título e atrair as atenções e as vendas. São obrigados a prestarem-se a funções indignas, como as de vigiarem as casas dos "colunáveis", espiarem-lhes os casamentos, os enterros, a sua vida privada; perseguirem as mulheres e os filhos dos suspeitos presos pela justiça e arrancar-lhes uma lágrima, um estremecimento de terror, um reflexo de animais acossados; erigirem-se em juízes e decretarem condenações públicas sem audição dos acusados; recorrerem a fontes anónimas, de cara tapada e voz distorcida, aliciadas de todas as formas e feitios, incluindo ofertas de dinheiro; fazerem notícias sem substância, nem conteúdo, apenas na base da insinuação de que "não aconteceu, mas quem sabe se não poderia ter acontecido?". Nas redacções nenhum editor, supondo que seria capaz, lhes ensina coisa alguma sobre jornalismo: como deve ser investigada uma notícia, como deve ser redigida, como deve ser feito um título. Porque já não é de jornalismo que se trata, mas de simples compra e venda de títulos e de supostas notícias. E eles já não são tratados como jornalistas, mas como mercenários, merceeiros da informação. Se porventura têm a coragem de resistir e recusar, é-lhes respondido que há muitos candidatos para o seu lugar e são encostados à parede e ostracizados e humilhados até ao ponto em que já não aguentem mais e prefiram o desemprego.
Tudo o que esta profissão tinha de apaixonante, de reconfortante e de compensação ao mérito e ao talento desapareceu por completo, salvo honrosas excepções, de que este jornal é, felizmente, uma delas. (E quem me conhece sabe bem que digo isto com inteira sinceridade e liberdade: assim como, por razões estritamente minhas e de trabalho, me afastei daqui um ano e meio, assim sairia no dia em que o PÚBLICO caísse nas mãos de simples merceeiros do jornalismo.)
Tive a sorte de viver um tempo de ouro no jornalismo português, um tempo fundador. Talvez por isso sinto uma infinita revolta quando vejo uma geração inteira de novos jornalistas a quem todos os sonhos, todas as ilusões e toda a dignidade foi roubada. E não são apenas eles a pagarem as consequências: todos nós, na qualidade da informação e da democracia que temos, iremos pagar por isso. "


in PÚBLICO, 9 de Maio de 2003

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